Maria Tereza Leme FleuryI; Afonso Carlos Correa FleuryII
IFEA-USP
IIFEA-USP
RESUMO
Diversos trabalhos vêm analisando o tema competência em seus diferentes níveis de entendimento e aplicação ao contexto organizacional, o que demanda a construção de um modelo teórico que explicite como esses diferentes conceitos se articulam e podem contribuir para o entendimento de propostas de desenvolvimento das organizações. Este artigo procura responder às seguintes questões: qual a relação entre competências organizacionais e estratégias competitivas nas empresas? No caso da formação de cadeias produtivas, haveria diferenças na construção de competências em empresas situadas em diferentes níveis? E quais seriam as implicações dessa inter-relação – estratégia e competências – para as ações da gestão de RH? A partir dessas questões, e com base em uma pesquisa realizada em empresas do setor de telecomunicações, procurou-se elaborar um modelo que fornecesse sustentação a essa discussão.
Palavras-chave: Gestão de competências, estratégia organizacional.
ABSTRACT
Competence, as a new concern among academics and practitioners, is being focused according to distinct conceptual approaches and applied to different facets of the organizational reality. Clearly, this creates the demand for the development of a theoretical model through which those distinct concepts might be integrated and applied to a better understanding of the organizational dynamics as well as an enhanced utilization of organizational development propositions. The following questions require clear answers for that model building process: What to say about the dynamic relationship between organizational competences and competitive strategies? In the case of the formation of productive chains would there be differences in the construction of competences in companies situated in different levels? What would be the implications for Human Resources Management? The theoretical model that was developed to provide support to the answering process, was empirically tested in a field research conducted among firms in the Telecommunications industry.
Keywords: Competence management, organizational strategy.
INTRODUÇÃO
Diversos trabalhos vêm analisando o tema competência em seus diferentes níveis de entendimento e aplicação ao contexto organizacional. Pode-se encontrar na literatura norte-americana e européia definições para competências essenciais, organizacionais e individuais, o que demanda a construção de um modelo teórico que explicite como esses diferentes conceitos se articulam e podem contribuir para o entendimento de propostas de desenvolvimento organizacional.
Este trabalho procura responder às seguintes questões: qual a relação entre competências organizacionais e estratégias competitivas nas empresas? No caso de empresas que competem organizadas em cadeias produtivas, haveria diferenças na construção de competências entre empresas situadas em diferentes níveis? E quais seriam as implicações dessa inter-relação – estratégia e competências – para as ações da gestão de RH?
O trabalho está estruturado em três partes. A primeira é constituída por esta introdução. A segunda parte diz respeito à construção do modelo teórico: toma a origem do conceito de competência, apresenta-se o conceito em seus vários níveis de compreensão e encaminha-se a elaboração de um modelo de análise. Na terceira, procura-se ilustrar esse modelo a partir da apresentação de uma pesquisa realizada entre empresas da indústria de telecomunicações. Essa pesquisa possibilitará referenciar empiricamente as questões propostas neste estudo.
CONSTRUINDO UM MODELO QUE ALINHE ESTRATÉGIA COMPETITIVA E FORMAÇÃO DE COMPETÊNCIAS
O início do debate sobre competências
O conceito de competência no contexto organizacional começou a ser elaborado sob a perspectiva do indivíduo. Em 1973, McClelland publicou o artigo “Testing for competence rather than intelligence”, que, de certa forma, iniciou o debate sobre competência entre os psicólogos e administradores nos Estados Unidos. A competência, segundo o autor, é uma característica subjacente a uma pessoa que pode ser relacionada com desempenho superior na realização de uma tarefa ou em determinada situação. Diferenciava, assim, competência de aptidões (talentos naturais da pessoa, que podem vir a ser aprimorados), de habilidades (demonstrações de talentos particulares na prática) e de conhecimentos (o que a pessoa precisa saber para desempenhar uma tarefa) (McClelland, 1973).
Durante a década de 1980, Richard Boyatzis, reanalisando os dados de estudos realizados sobre as competências gerenciais, identificou um conjunto de características e traços que, em sua opinião, definem um desempenho superior (Boyatzis, 1982). O trabalho desse autor marcou significativamente a literatura norteamericana a respeito do tema competência (Spencer e Spencer, 1993; McLagan, 1997; Mirabile, 1997).
Nessa perspectiva, o conceito de competência é pensado como um conjunto de conhecimentos, habilidades e atitudes que justificam um alto desempenho, na medida em que há também um pressuposto de que os melhores desempenhos estão fundamentados na inteligência e na personalidade das pessoas. Nessa abordagem, considera-se a competência, portanto, como um estoque de recursos que o indivíduo detém. A avaliação dessa competência individual é feita, no entanto, em relação ao conjunto de tarefas do cargo ou da posição ocupada pela pessoa.
Nessa linha, a gestão por competências é apenas um rótulo mais moderno para administrar uma realidade organizacional ainda fundada nos princípios do taylorismo-fordismo. A competência permanece ligada ao conceito de qualificação, usualmente definida pelos requisitos associados à posição ou ao cargo – os saberes ou o estoque de conhecimentos da pessoa, os quais podem ser classificados e certificados pelo sistema educacional. Assim definido, o conceito de competência não atende às demandas de uma organização complexa, mutável, em um mundo globalizado. Dito em outras palavras, definir um estoque de recursos individuais necessários ao bom desempenho em cada cargo ou posição não é condição suficiente para atender a demanda por inovação e flexibilidade que se coloca às empresas.
O conceito de competência que emerge na literatura francesa dos anos 1990 procurava ir além do conceito de qualificação. Zarifian (1999) foca três mutações principais no mundo do trabalho que justificam a emergência do modelo de competência para a gestão das organizações:
• a noção de evento – aquilo que ocorre de maneira imprevista, não programada, vindo a perturbar o desenrolar normal do sistema de produção, ultrapassando a capacidade rotineira de assegurar sua autoregulação; isso implica que a competência não pode estar contida nas predefinições da tarefa: a pessoa precisa estar sempre mobilizando recursos para resolver as novas situações de trabalho;
• comunicação – comunicar implica compreender o outro e a si mesmo; significa entrar em acordo sobre objetivos organizacionais, partilhar normas comuns para sua gestão; e
• a noção de serviço, de atender a um cliente externo ou interno da organização, precisa ser central e estar presente em todas as atividades; para tanto, a comunicação é fundamental.
O trabalho não é mais o conjunto de tarefas associadas descritivamente ao cargo, mas torna-se o prolongamento direto da competência que o indivíduo mobiliza em face de uma situação profissional cada vez mais mutável e complexa.
Ampliando o zoom do conceito de competência
O conceito de competência organizacional tem suas raízes na abordagem da organização como um portfólio de recursos – resource based view of the firm. Essa abordagem considera que toda empresa tem um portfólio: físico (infra-estrutura), financeiro, intangível (marca, imagem etc.), organizacional (sistemas administrativos, cultura organizacional) e recursos humanos. Para os defensores dessa abordagem, é esse portfólio que cria vantagens competitivas (Krogh e Roos, 1995). Dessa maneira, a definição das estratégias competitivas deve começar com um entendimento profundo das possibilidades estratégicas dadas por tais recursos (ver Figura 1).
Essa abordagem difere do conceito de Porter (1996) de posicionamento estratégico, em que a análise parte da indústria e do entendimento da posição competitiva que a organização deve adotar na formulação de sua estratégia. O foco da análise aqui é, claramente, o mercado e os competidores, sendo a vantagem competitiva derivada da exploração das oportunidades e tendências aí encontradas. Tidd et al. (1998) classificam a abordagem de Porter como racionalista, e a da recursos da firma como incrementalista, uma vez que incorpora e valoriza a noção de aprendizagem organizacional e de experiência para lidar com a complexidade e a mudança como fatores relevantes no processo estratégico e de obtenção de vantagem competitiva.
A abordagem dos recursos da firma enfatiza a maior importância de se centrar a formulação estratégica em um grupo específico de recursos – aqueles que garantem lucratividade a longo prazo. Essa abordagem distingue entre recursos e competências.
“Um recurso é algo que a organização possui ou tem acesso, mesmo que esse acesso seja temporário […] uma competência é uma habilidade para fazer alguma coisa […] uma competência é construída a partir de um conjunto de ‘blocos’ denominados recursos” (Mills et al., 2002, p. 9-14).
No final dos anos 1980, Prahalad e Hamel deram uma contribuição significativa para a construção dessa caracterização ao proporem o conceito de “competências essenciais” – core competence. Competência seria a capacidade de combinar, misturar e integrar recursos em produtos e serviços (Prahalad e Hamel, 1990). A competitividade de uma organização seria determinada pela inter-relação dinâmica entre as competências organizacionais e a estratégia competitiva. Dessa maneira, a abordagem dos recursos faz o processo de formulação da estratégia e a formação de competências formarem um círculo que se retroalimenta. Em outras palavras, as competências são formadas a partir de recursos, e as estratégias são elaboradas a partir de grupos de recursos – competências essenciais. A implantação da estratégia gera novas configurações de recursos e novas competências que, por sua vez, irão influenciar novamente a formulação da estratégia. Esse ciclo, segundo nossa perspectiva, pode ser ilustrado da seguinte maneira:
Prahalad e Hamel diferenciam competências organizacionais e competências essenciais. As competências essenciais seriam aquelas que obedecem a três critérios: oferecem reais benefícios aos consumidores, são difíceis de imitar e dão acesso a diferentes mercados. Ao definir sua estratégia competitiva, a empresa identifica as competências essenciais do negócio e as competências necessárias a cada função – as competências organizacionais. Dessa maneira, pode-se dizer que a organização possui diversas competências organizacionais, localizadas em diversas áreas; destas, apenas algumas são as competências essenciais, aquelas que a diferenciam e que lhe garantem uma vantagem competitiva sustentável perante as demais organizações.
Tal competitividade vai depender, no longo prazo, da administração do processo de aprendizagem organizacional, que vai reforçar e promover as competências organizacionais e vai dar foco e reposicionar as estratégias competitivas.
Mills et al. (2002), procurando sistematizar esses conceitos, propõem um quadro-síntese para definir os vários níveis de competências organizacionais (ver Quadro 1).
Alguns pontos merecem destaque nesse quadro: em primeiro lugar, a diferenciação proposta entre as competências distintivas, reconhecidas pelos clientes, e as competências organizacionais. Esse ponto é muito pouco enfatizado por outros autores e, em nossa experiência profissional, é algo que dificilmente as organizações conhecem, embora partilhem o discurso sobre a importância do cliente. Um outro ponto diz respeito ao conceito de competência organizacional: a nosso ver, ela pode perpassar as várias unidades de negócio e ser geral à organização.
Competências da organização e competências individuais
Zarifian (1999) distingue diversos conteúdos em relação às competências organizacionais que acabam por configurar diferentes áreas de desenvolvimento de competências:
• competências sobre processos: os conhecimentos sobre o processo de trabalho;
• competências técnicas: conhecimentos específicos sobre o trabalho que deve ser realizado;
• competências sobre a organização: saber organizar os fluxos de trabalho;
• competências de serviço: aliar a competência técnica à pergunta “qual o impacto que este produto ou serviço terá sobre o consumidor?”; e
• competências sociais: saber ser, incluindo atitudes que sustentam o comportamento das pessoas. O autor identifica três domínios dessas competências: autonomia, responsabilização e comunicação.
Observa-se que todas as áreas de competências identificadas por Zarifian (1999) dependem, em grande medida, da ação das pessoas. Assim, pode-se afirmar que o desenvolvimento das competências organizacionais está intimamente relacionado ao desenvolvimento das competências individuais e das condições dadas pelo contexto.
É nesse sentido que Hamel e Prahalad afirmam que as competências essenciais não correspondem a uma tecnologia específica. Podem ser o resultado da excelência em qualquer função do negócio e são resultantes do aprendizado coletivo na organização, especialmente da coordenação das diversas habilidades de produção e da integração de múltiplas correntes de tecnologia; assim, é fundamental ao modo de organizar o trabalho e de entregar valor.
Dessa maneira, pode-se dizer que as competências – tanto as essenciais como as organizacionais – são constituídas a partir da combinação de recursos e de múltiplas competências individuais, de tal forma que o resultado total é maior do que a soma das competências individuais.
A competência do indivíduo não é um estado, não se reduz a um conhecimento ou know how específico. Le Boterf (1995) coloca a competência como resultado do cruzamento de três eixos: a formação da pessoa – sua biografia e socialização -, sua formação educacional e sua experiência profissional. Segundo Le Boterf, a competência é um saber agir responsável e, como tal, reconhecido pelos outros. Implica saber como mobilizar, integrar recursos e transferir os conhecimentos, recursos e habilidades em um determinado contexto profissional.
A nosso ver, a noção de competência aparece, assim, associada a verbos e expressões como: saber agir, mobilizar recursos, integrar saberes múltiplos e complexos, saber aprender, saber se engajar, assumir responsabilidades e ter visão estratégica. Do lado da organização, as competências devem agregar valor econômico para a organização e valor social para o indivíduo (Fleury e Fleury, 2000).
Observa-se que essas competências não são apenas conhecimentos ou habilidades, são conhecimentos e habilidades em ação. As competências individuais serão diferentes conforme a pessoa atue em uma ou em outra organização.
A introdução da locução verbal “agregar valor” implica que o desenvolvimento e a combinação das competências individuais deve resultar no desenvolvimento de competências organizacionais e competências essenciais, alinhadas à estratégia organizacional. Um outro conceito fundamental a ser incorporado é o de entrega (Dutra, 2001), ou seja, o que a pessoa realmente deseja entregar à organização.
Alinhando a estratégia competitiva e as competências na organização
Não cabe no escopo deste texto retomar a discussão sobre estratégias empresariais, mas apresentar uma tipologia que auxilie na construção de um modelo. Assim, procuramos construir uma tipologia que desse sustentação ao processo de formulação das estratégias e ao desenvolvimento de competências, remetendo ao trabalho clássico de Woodward (1965). Seguindo a abordagem utilizada por essa autora em seu trabalho Industrial Organization, e desde então ratificada por inúmeros autores (por exemplo, Slack, 1995), consideramos que em cada empresa as competências essenciais estão relacionadas a três diferentes áreas ou funções: Operações, Produtos/Serviços e Vendas/Marketing. As demais funções – finanças, tecnologia de informação e gestão de recursos humanos – são de apoio.
Um segundo ponto do trabalho de Woodward, fundamental para estruturação de nosso modelo de análise, é a constatação de que, dependendo dos tipos de produto/mercado, uma dessas três funções vai ser mais importante no plano estratégico, por desempenhar um papel de integração e coordenação das duas outras.
No enfoque adotado neste trabalho, consideramos que o modelo proposto, alinhando estratégia e competência, pode ser utilizado tanto para empresas industriais como para empresas de serviços. Nesses dois tipos de empresa existe a alternativa de se produzir: a) produtos ou serviços padronizados, em massa; b) produtos ou serviços diferenciados, para nichos específicos de mercado; e c) produtos ou serviços sob encomenda. No caso específico de serviços, Silvestro (1999) propõe a seguinte classificação: serviços de massa, serviços de loja – shop service – e serviços profissionais.
Quanto à estratégia, para os fins deste estudo, é mais importante adotar uma tipologia que possibilite um entendimento geral do comportamento estratégico das empresas do que uma abordagem minuciosa de como se estabelecem estratégias competitivas. Partimos, assim, da proposta de Treacy e Wiersema (1995) e consideramos três tipos de estratégia que as empresas podem privilegiar para atuarem no mercado: Excelência Operacional, Liderança em Produto e Orientação para Clientes. A relação dinâmica entre competências essenciais e estratégias competitivas é elaborada a seguir.
O desafio de uma companhia que adota a estratégia de Excelência Operacional é oferecer ao mercado um produto que otimize a relação qualidade/preço. O exemplo típico de Excelência Operacional é a indústria automobilística. Em geral, produtos padronizados, do tipo commodity, exigem esse tipo de estratégia.
A função crítica para o sucesso da empresa é Operações, que inclui todo o ciclo logístico: suprimento, produção, distribuição e serviços pós-venda. É para essa função que a empresa tem de, prioritariamente, orientar seus esforços de aprendizagem e inovação. Ao desenvolver competências nas outras áreas – Desenvolvimento de Produto e Vendas & Marketing -, isso deve estar orientado para alavancar o desempenho competitivo da primeira competência. Por isso, a inovação incremental é desejável e a inovação no processo é tão relevante quanto a inovação em produto. Na relação com os clientes, o papel de Vendas & Marketing é de “fazer os clientes se adaptarem ao modo operacionalmente excelente de fazer negócios da empresa” (Treacy e Wiersema, 1995).
As empresas que competem em termos de Produtos Inovadores estão continuamente investindo para criar conceitos radicalmente novos de produtos para clientes e segmentos de mercado específicos. A função crítica é Pesquisa & Desenvolvimento. Por isso, as informações mais relevantes para a estratégia da empresa vêm dos laboratórios de Pesquisa & Desenvolvimento. As indústrias relacionadas às tecnologias de informação – telecomunicações, informática etc. – são exemplos típicos. Empresas como Intel, Nokia e Motorola são algumas das líderes nesse segmento.
As empresas que escolhem essa estratégia garantem seu sucesso econômico por meio da introdução sistemática de produtos radicalmente novos no mercado, o que torna obsoletos os antigos. Sobrevivem e prosperam devido à alta lucratividade que desfrutam durante o tempo em que conseguem manter uma posição de monopólio no mercado (Abernathy e Utterback, 1975).
A função de Vendas & Marketing difere do caso anterior, uma vez que cabe a ela preparar o mercado para os novos produtos e “educar” os potenciais clientes. Assim, os esforços de marketing são baseados, principalmente, em competências técnicas. O papel de Operações também difere. O que importa é a evolução da idéia do novo produto para a escala industrial; não se trata de ser “enxuto”, embora esse objetivo possa ser buscado em um estágio posterior.
O caso das empresas aeronáuticas, como a Embraer, é ilustrativo. Elas têm como desafio desenvolver novos conceitos de avião, que são vendidos a clientes sensíveis à inovação muito antes de o produto ser projetado em suas características reais, testado e posto em um sistema de produção em escala.
As empresas com Orientação para o Cliente estão voltadas a atender às necessidades de clientes especiais, criando soluções e serviços específicos. Para tanto, formam competências e conhecimentos necessários para o desenvolvimento de soluções e sistemas. Em função de sua proximidade com os clientes, especializam-se em satisfazer, e até antecipar, suas necessidades e propor soluções.
Embora essas empresas entreguem um produto, é o serviço que fornecem a parte mais importante do negócio. A competência forte é a de relacionamento, de marketing, que aciona, orienta e coordena as funções de Desenvolvimento de Produtos e Operações. A lucratividade dessas empresas decorre de poderem cobrar um preço também mais alto pelo serviço customizado que oferecem. A IBM costumava ser considerada o exemplo dessa estratégia (Wheelwright e Hayes, 1985). A Caterpillar também era considerada um outro caso de proximidade com o cliente (Treacy e Wiersema, 1995, p. 126).
A função de Desenvolvimento de Produtos tem de combinar a orientação para o cliente com conhecimentos técnicos específicos; não há necessidade de se buscar a otimização das condições de operação nem de desenvolver projetos radicalmente inovadores, como no caso anterior.
Os níveis da competência na organização
A dinâmica entre os diversos níveis de competência que se formam na organização pode ser explicada da seguinte maneira: em um nível mais geral, temos as competências organizacionais, que se formam nas unidades e funções; destas, algumas são consideradas competências essenciais e são básicas quando da elaboração da estratégia competitiva; as competências essenciais produzem atributos que constituem as competências distintivas percebidas pelos clientes.
Essas competências são formadas a partir da combinação de recursos da organização e de competências individuais.
Vale ressaltar a característica de inter-relação entre os diversos níveis de competência, ou seja, a relação de mão dupla que se estabelece entre eles. A escolha estratégica é feita a partir do mapeamento dos recursos e das competências organizacionais e da análise do ambiente. As competências organizacionais são formadas a partir das competências individuais na utilização e exploração dos recursos organizacionais. A aprendizagem, intrínseca a esse processo, cria novas competências individuais em um círculo virtuoso (ver Figura 2).
A gestão das competências e o papel da área de recursos humanos
Nos últimos anos, as mudanças no enfoque sobre a atuação da área de RH têm tido muitos defensores, entre eles, Ulrich (1998), que enfatiza o papel estratégico da área para as mudanças organizacionais.
No final da década de 1980, Storey (1989) já observava, com muita propriedade, o uso elástico da expressão “gestão estratégica de recursos humanos”. Segundo esse autor, era possível identificar uma versão soft do termo e uma versão hard. A versão hard enfatiza os aspectos quantitativos, de administrar recursos humanos de forma racional, objetivando a estratégia do negócio. A versão soft enfatiza os aspectos de comunicação, motivação e liderança. Ou seja, a definição de uma estratégia de recursos humanos para se obter uma força de trabalho altamente comprometida com a organização deve preceder as demais estratégias organizacionais.
Na gestão de um modelo baseado em competências, essa ambigüidade fica mais evidente. Por um lado, a área de recursos humanos deve assumir um papel importante no desenvolvimento da estratégia da organização, na medida em que cuida com mais propriedade de atrair, manter e desenvolver as competências necessárias à realização dos objetivos organizacionais. Nesse sentido, é fundamental que explicite e organize a relação entre as competências organizacionais e as individuais. Por outro lado, é ela que garante que, nesse processo de desenvolvimento de competências, agregue-se também valor para o indivíduo. Em outras palavras, o papel da gestão de recursos humanos nesse contexto é complexo e envolve a negociação de interesses. Essas observações contextualizam a terceira questão proposta neste artigo, referente às ações da área de recursos humanos no desenvolvimento de competências.
ESTRATÉGIA E COMPETÊNCIAS NA INDÚSTRIA DE TELECOMUNICAÇÕES
Com o objetivo de ilustrar o uso desse modelo para análise da estratégia e do desenvolvimento de competências, apresentaremos um estudo realizado em empresas do setor de telecomunicações.
A indústria de telecomunicações
Nas últimas décadas, a indústria de telecomunicações passou por profundas transformações em quase todo o mundo. Fransman (2002) analisa a transformação da “velha” indústria de telecomunicações que, em meados da década de 1980, é desmontada com a extinção do monopólio até então vigente em países como Japão, Estados Unidos e Reino Unido. Essa onda de liberalização atinge a Europa como um todo e os países da América Latina nos anos 1990. Segundo esse autor, ainda mais importante foi a evolução tecnológica que dá origem à indústria de infocomunicação, que se apóia em uma tríade de tecnologias: packet-switching, internet protocol e world wide web.
Na transição de um modelo para outro, delimitar as fronteiras entre as diversas atividades e identificar os agentes e suas estratégias tornou-se cada vez mais difícil. De acordo com Nicholls-Nixon e Jasinski (1995), antes de 1995 as fronteiras da indústria de telecomunicações eram claramente definidas: companhias telefônicas e produtores de equipamentos desempenhavam, cada um, seu papel na infra-estrutura de comunicação em duas vias.
O advento da tecnologia digital e a extinção do monopólio das operadoras nos diversos países precipitaram tanto o nascimento de novas empresas que alimentavam a expectativa de se tornarem competidores nesse jogo quanto atraíram a entrada de competidores provenientes de diferentes setores. Provocou-se uma redefinição de produtos, serviços e fornecedores.
A capacidade para digitalizar a informação – que possibilita a criação das information highways, que ligam escritórios, casas, empresas, universidades, etc. – está mudando, no entanto, tanto a natureza do meio usado para transmitir a informação, como os instrumentos para enviar e receber as informações.
As empresas de equipamentos, em especial, viram a oportunidade de criação de novos mercados com seu conhecimento e suas competências acumulados e começaram a fornecer tecnologia e a desenvolver projetos inovadores. Quanto às operadoras, a partir de 1995 observa-se que, cada vez mais, deixam a área de Pesquisa & Desenvolvimento relacionada aos equipamentos para as empresas especializadas fornecedoras de tecnologia.
Mais recentemente, esse modelo está sendo novamente redefinido: as atividades mais rotineiras de manufatura e operações, assim como os serviços de pós-venda, estão sendo terceirizadas para companhias globais criadas recentemente – Celestica, Solectron e outras.
Conforme se pode depreender dessa movimentação e redefinição de papéis, as fronteiras entre as empresas estão se tornando cada vez mais nebulosas e o perfil de competências em cada empresa redefine-se a cada momento.
Estratégia e competências na indústria de telecomunicações no Brasil
No caso brasileiro, após a privatização do setor de telecomunicações no final dos anos 1990, há um movimento de empresas que buscam se posicionar no país. Observa-se não só a chegada de grandes empresas estrangeiras, especialmente as de origem norte-americana e ibérica, mas também a entrada de grandes empresas brasileiras de outros setores de atividade – informações e entretenimento – ao lado de novos competidores recémconstituídos. A nosso ver, um dos pontos críticos da dinâmica das empresas passa a ser a “produção de serviço” (Zarifian e Gadrey, 2002), que no contexto préprivatização recebia pouca atenção. Dadas as características da indústria e do mercado local, há um permanente processo de criação e produção de serviços que criam condições de pesquisa bastante favoráveis ao tema em pauta – decisões estratégicas e formação de competências organizacionais.
Um estudo empírico na indústria de telefonia móvel – aspectos metodológicos
Retomando as questões colocadas inicialmente e direcionando-as mais especificamente para o setor de telecomunicações, objeto empírico de nossa análise, perguntamos: qual é a relação entre as competências organizacionais e as estratégias competitivas na indústria de telecomunicações e, especialmente, quando as empresas fazem parte de redes interorganizacionais internacionais? Há diferenças na construção de competências entre os fornecedores de equipamentos e os provedores de serviços, como as operadoras? E qual o papel de recursos humanos no desenvolvimento de competências?
Para responder a essas questões, realizamos um estudo em empresas do setor: três subsidiárias de empresas fornecedoras de equipamentos – uma européia, uma japonesa e uma norte-americana – e três operadoras de comunicação móvel – duas européias e uma brasileira. Embora o projeto de pesquisa fosse mais abrangente, para efeito deste estudo apresentaremos os resultados da pesquisa na cadeia de telefonia móvel. Uma análise de documentos das empresas selecionadas, inclusive relativos a diretrizes estratégicas e competências, precedeu o trabalho de campo. Foram realizadas entrevistas com pessoas da diretoria, responsáveis por planejamento e definição da estratégia e pela gestão de recursos humanos. Em uma das empresas, tivemos a oportunidade de realizar um workshop com diretores e gestores, em que foi possível aprofundar a discussão sobre as competências organizacionais.
As entrevistas foram semi-estruturadas e focadas nos seguintes aspectos: estratégia competitiva, funções críticas, relações a montante e a jusante, desenvolvimento de produto e serviços, gerenciamento e atividades de operações, e administração de recursos humanos. Em cada empresa procuramos a caracterização da estratégia competitiva, o papel das três funções básicas – Operações, Desenvolvimento de Produtos/Serviços e Vendas & Marketing – e os esforços e investimentos na construção de competências organizacionais. As competências individuais foram apenas mencionadas, mas não trabalhadas em profundidade na pesquisa. Buscando maior compreensão do mercado e dos aspectos tecnológicos, dois grandes usuários dos serviços de telecomunicações – um banco e uma empresa jornalística, ambos brasileiros – e o Centro para Pesquisa e Tecnologia em Telecomunicações – CPqD – também foram entrevistados.
Estratégia e competências nas empresas operadoras
As operadoras estão segmentando o mercado de acordo com três tipos de cliente/serviço que, mais uma vez referenciando a tipologia proposta por Silvestro (1999), seriam serviços de massa, “loja de serviços” e serviços profissionais. O comportamento das empresas operadoras em termos da definição de estratégias e competências será avaliado segundo essa tipologia.
O primeiro, serviços de massa, inclui os clientes que demandam apenas o serviço básico: transmissão de voz. A estratégia das empresas busca aumentar a escala e minimizar os custos para otimizar a margem por cliente. Para aumentar a escala, as atividades de marketing seguem o receituário de mercados impessoais de grande volume: preço, promoção, publicidade e ponto de vendas. Esse esforço para capturar clientes nem sempre é seguido pelo de fidelizá-los, como recomendado pela literatura – como o mercado ainda está em crescimento, aspectos de fidelização e de recuperação de clientes não constituem ainda preocupação para as empresas pesquisadas. Na relação com fornecedores, as operadoras costumam adotar “táticas duras”, visando a minimizar o custo dos insumos. Dado o alto poder de barganha, utilizam mecanismos impessoais, inclusive comércio eletrônico, sendo o preço de compra o critério mais importante. Assim, podemos afirmar que essa parte da empresa, em sua relação com clientes e mercados, segue o modelo da Excelência Operacional, inclusive no seu front office: atividades de marketing de massa e call center estruturado a partir de uma rígida lógica de tempos. Esse comportamento foi verificado em todos os casos, com leves nuanças de adaptação dos mecanismos de relacionamento com clientes em função de especificidades locais.
O segundo tipo de estratégia atende clientes que, além do serviço de transmissão de voz, demandam serviços complementares. São clientes de certa forma propensos à inovação, às novidades, para os quais a indústria de telecomunicações pode desenvolver produtos e serviços diferenciados, de nicho.
As operadoras têm esse mercado de loja de serviços subdividido, dependendo do tipo de cliente/serviço. Elas atendem clientes individuais – pessoas, residências, Soho-small office home office – com serviços como short message service, transmissão de fotos, broadband, entre outros. No segmento corporativo, elas vendem capacidade de transmissão para viabilizar serviços projetados e operados por outras empresas; nesses casos, a operadora funciona apenas como transportador-carrier. Entre as três operadoras estudadas, uma é tida como inovadora, investindo bastante nesse segmento, no qual o risco é considerável, dele extraindo cerca de 20% de seu faturamento, com tendência crescente. A segunda é considerada seguidora e a terceira tem pouca presença nesse tipo de serviço/mercado.
Quando a operadora funciona como loja de serviço, a função de marketing assume um papel crítico, tendo como principal encargo a identificação de perfis dos clientes para que as escolhas por “novos produtos” possa ser otimizada, reduzindo os riscos do investimento associados aos lançamentos. É a área na qual o CRM – Customer Relationship Management – é mais relevante. A relação com fornecedores nesse tipo de produto/mercado passa a ser cooperativa na medida em que a introdução de novos produtos/serviços requer desenvolvimento de hardwares e softwares específicos.
O terceiro tipo de estratégia é direcionada ao mercado corporativo, que é tratado de forma totalmente individualizada. Esse mercado envolve a transmissão de voz e o desenvolvimento de sistemas para a transmissão de altos volumes de dados. É o mercado mais incipiente e considerado o mais promissor. O objetivo é criar soluções e sistemas para as demandas de grandes clientes, incluindo corporações e instituições governamentais. Em geral, isso implica a formação e o gerenciamento de grandes equipes de projeto, incluindo fornecedores de equipamento e empresas de consultoria gerencial e tecnológica. Esse tipo de serviço requer um conjunto de competências completamente diferente em termos de administração do projeto e de estabelecimento da relação com o cliente. Essas competências assemelham-se às de uma consultoria: equipes são criadas e os trabalhadores de linha de frente precisam entender profundamente o negócio do cliente e o potencial de aplicação das telecomunicações. Nesse segmento, as operadoras seguem uma estratégia de Orientação para o Cliente. Tal comportamento foi verificado nas três empresas, não obstante em escalas totalmente distintas. Duas delas, as mais avançadas, estavam procurando estabelecer as bases para passarem a gerenciar os serviços de telecomunicações de grandes clientes – bancos, nesses casos.
O Quadro 2 sistematiza as competências segundo os tipos de estratégia de produto/mercado e segundo as funções Operações, Desenvolvimento de Produtos /Serviços e Vendas & Marketing. Observa-se que a redação de cada competência é uma elaboração dos pesquisadores, fruto das informações coletadas e de discussão posterior com os entrevistados. Trata-se de um quadro de síntese, não refletindo a ponderação encontrada nas diferentes empresas operadoras. Na realidade, a priorização das competências e dos investimentos feitos no desenvolvimento de competências ainda era objeto de grandes discussões dentro das empresas. Isso pareceu-nos plenamente justificado em função da turbulência ambiental e do fato de que a indústria de telecomunicações é caracteristicamente de rápido ciclo de mudanças – fast clockspeed (Fine, 1998).
Em nosso entendimento, as operadoras de rede estão especialmente preocupadas em explorar segmentos de mercado distintos e, para tanto, utilizam estratégias diversificadas, apoiadas em configurações diferentes de competências. As relacionadas à função Operações são essenciais para o segmento de serviços básicos, em que a estratégia de Excelência Operacional é buscada. No segmento de lojas de serviços, verifica-se uma composição entre Excelência Operacional, Inovação em Produtos/Serviços e Orientação para o Cliente com as três funções – Operações, Desenvolvimento e Marketing – agindo de maneira muito integrada. Finalmente, no mercado corporativo, a estratégia é claramente de Orientação para o Cliente.
Foi possível observar que, nessas empresas, a área de recursos humanos vem assumindo um papel cada vez mais estratégico. Estudos anteriores, realizados entre empresas desse segmento no período pré-privatização (Fleury e Fleury, 1995), observaram que a gestão de pessoas pautava-se por padrões bastante tradicionais, em termos das políticas e práticas de gestão adotadas e da posição secundária da área em relação às decisões estratégicas das empresas. O único investimento significativo realizado era voltado para a área de treinamento, principalmente o treinamento técnico.
Assim, o desafio assumido pelas empresas privatizadas foi o de desenvolver novas competências, recrutando pessoas, na maioria das vezes, de outros segmentos produtivos. Atrair, desenvolver e reter pessoas para um negócio em expansão e contínua reconfiguração, com um quadro enxuto de funcionários, passou a ser o desafio da área. A dificuldade, observada em nossa pesquisa e corroborada em outros trabalhos (Silva, 2002), era alinhar as competências individuais com as organizacionais. Em outras palavras, nas empresas pesquisadas, os profissionais de RH conseguiram listar as competências a serem buscadas nas pessoas – em alguns casos, dialogando, inclusive, com as competências identificadas na matriz -, mas não conseguiam ainda alinhá-las às competências organizacionais.
Um outro aspecto ainda pouco trabalhado nas empresas pesquisadas diz respeito à formação do tecido de uma “nova” cultura organizacional. Tecer uma nova cultura em empresas estatais privatizadas, passando por processos de fusão, é um desafio pouco trabalhado nas empresas pesquisadas – o que foi encontrado também por outros pesquisadores (Rodrigues, 2002).
Estratégia e competências nas empresas fornecedoras de equipamentos
Duas das empresas de equipamentos pesquisadas já atuavam no país antes da privatização. Devido às características do mercado local – em termos de demanda e regulação -, elas adotavam uma estratégia localizada, produzindo equipamentos sob encomenda para a Telebrás, de acordo com as especificações do CPqD e utilizando conhecimento tecnológico oriundo das matrizes. As especificidades do contexto local implicavam que essas subsidiárias contassem com fortes competências em Desenvolvimento de Produtos e Operações, especialmente manufatura. A terceira empresa que se instalou no país na segunda metade dos anos 1990 já adotava como estratégia a Excelência Operacional, produzindo localmente produtos mundiais de acordo com projetos desenvolvidos em sua matriz e exportando de acordo com sua estratégia global.
No período pós-privatização, a estratégia dessas fornecedoras de equipamentos foi de passar a oferecer “pacotes” de produtos – turn key projects – para a parte de infra-estrutura e novos equipamentos e softwares para viabilizar novos serviços. Assim, essas empresas passaram a incorporar competências como “desenvolvedoras de soluções integradas” – integrated solution providers -, utilizando projetos de produtos desenvolvidos nas matrizes, com pequenas adaptações para atender às condições locais, e reforçando suas competências no desenvolvimento de softwares, o que possibilita ao equipamento atender às demandas locais e ser compatível com a infra-estrutura já existente.
Esse novo posicionamento estratégico, de provedor de soluções, levou ao reposicionamento da função Operações. Seguindo tendências internacionais, as empresas locais passaram a manufatura, a logística e o pósvenda de rotina para terceiros e focaram suas atividades, cada vez mais, ao mercado final e ao serviço aos clientes.
A tendência de priorizar o serviço ao cliente foi crescendo rapidamente, o que levou as empresas a investirem na formação de competências requeridas para compreender o cliente – tanto a operadora quanto seus mercados – e seus planos de negócios, com o objetivo de identificar oportunidades para o desenvolvimento e a venda de serviço. Uma das empresas, por exemplo, está implementando um programa denominado Competence Shift – mudança de competências – e alterando sua política de vendas, desmembrando produtos e serviços.
Também nas empresas fornecedoras de equipamentos é interessante utilizar a classificação de produtos de massa, produtos/serviços diferenciados e produtos /serviços sob encomenda. Os produtos de massa são equipamentos padronizados produzidos em grande escala; é o caso típico dos telefones celulares. Os produtos/serviços diferenciados são “soluções de prateleira”, como sistemas de transmissão/recepção que são adaptados de acordo com as especificações de determinados clientes. E os produtos/serviços sob encomenda referem-se a grandes projetos para grandes clientes corporativos, como os anteriormente mencionados para as empresas operadoras.
O Quadro 3 sistematiza as informações pesquisadas segundo três tipos de estratégia de produto/mercado observados nas operadoras: serviços de massa, lojas de serviços e serviços profissionais.
Em termos da gestão de pessoas, essas empresas já adotavam políticas e práticas mais avançadas do que as operadoras, mesmo antes da privatização (Fleury e Fleury, 1995). O foco principal eram as ações dirigidas à área operacional: programas de qualidade, de treinamento e comprometimento dos funcionários com os objetivos de qualidade e produtividade da empresa. Com a terceirização da maioria das atividades operacionais ligadas à manufatura, o foco de atuação da área deslocou-se para o desenvolvimento da expertise profissional, aliando-se diferentes competências – tecnológicas, de vendas e de comunicação. Há uma preocupação com a gestão do conhecimento, em termos de como organizar o conhecimento interno, buscá-lo em empresas especializadas e disseminá-lo. Com a mudança no modelo de gestão de pessoas adotado, ou seja, não se valorizando mais a estabilidade do emprego e a retenção das pessoas, problemas como criar uma memória organizacional com os conhecimento desenvolvidos ou adquiridos, desenvolver as competências nas pessoas e depois mantê-las na empresas tornam-se importantes. Nas entrevistas realizadas, observamos que essas questões foram mencionadas, mas não equacionadas.
Um outro ponto diz respeito ao alinhamento entre as competências individuais e as organizacionais; nesse caso, também observamos as dificuldades das empresas em realizarem tal intento.
Em suma, a indústria de telecomunicações é um caso em que a mudança tecnológica é rápida, a incerteza do mercado é alta e a regulação local é relevante. Nessas circunstâncias, observamos a emergência gradual do conceito de serviço como o maior determinante da formação de competências e da formulação da estratégia nos diversos níveis da rede interorganizacional. As competências de serviços são cruciais para o atingimento das estratégias locais, enquanto as competências não tão específicas podem estar localizadas em qualquer outro ponto da rede. Para implementar a estrutura organizacional com sucesso, as empresas têm de desenvolver competências diferenciadas para a coordenação efetiva.
CONCLUSÃO
Este artigo procurou trazer uma contribuição para a construção de um modelo relacionando competências e estratégia organizacional. Nessa elaboração, avançamos na discussão conceitual sobre competências essenciais, organizacionais e individuais e procuramos relacioná-las à definição de estratégia organizacional. Procuramos, assim, responder ao primeiro objetivo proposto, relacionando estratégias e competências em um modelo analítico.
O caso apresentado, da indústria de telecomunicação no Brasil, procurou ilustrar como as empresas desse setor vêm definindo suas estratégias e competências organizacionais em um cenário turbulento, pós-privatização. Observamos também que o modelo proposto foi referência importante para análise das mencionadas estratégias e competências organizacionais das empresas pesquisadas, em diferentes partes da cadeia produtiva. O uso da tipologia, segmentando o mercado/produto em serviços de massa, loja de serviços e serviços profissionais, possibilitou evidenciar as competências necessárias pelas operadoras vis-à-vis às competências necessárias aos fornecedores de equipamentos, objetivo proposto neste estudo.
Um ponto que consideramos relevante foi o da dificuldade que as empresas têm no alinhamento de competências e estratégias. No nível do discurso dos dirigentes entrevistados, essa premissa é colocada como imperativa. Não obstante, as dificuldades para a operacionalização revelaram-se particularmente severas na indústria de telecomunicações, em que a velocidade e a direção das mudanças é de difícil previsão.
De maneira geral, admitem os entrevistados, seria necessário desenvolver competências ou reorganizar as competências antes de se passar a mudanças nas orientações estratégicas. Mas, em um ambiente tão turbulento, o que prevalece é a abordagem clássica de definir estratégias e proceder ao desdobramento – muitas vezes usando o Balanced Scorecard -, chegando até as competências organizacionais necessárias. O passo seguinte, de desdobramento para as competências individuais, apresenta descontinuidades.
Isso se reflete na atuação da área de RH, terceiro ponto pesquisado neste estudo. É uma área que vem ganhando espaço organizacional, buscando participar das decisões estratégicas e investindo na definição de novas políticas e práticas de gestão.
Entretanto, os desafios enfrentados são muito significativos e refletem a ambigüidade da atuação dos profissionais de RH. Desde os primórdios do processo de privatização da indústria de telecomunicações no Brasil, tanto as empresas fornecedoras de equipamentos como as operadoras precisaram rever princípios que pautavam seus modelos de gestão, como o da estabilidade e o do comprometimento do quadro de funcionários. Colocou-se no lugar o modelo de desenvolvimento de competências, o qual representou avanços, mas também dificuldades em relação ao anterior. Entre elas, mencionaríamos:
• a dificuldade em relacionar as competências individuais e as organizacionais;
• o desenvolvimento de competências e a retenção das pessoas em um ambiente instável e competitivo; e
• a criação de um novo tecido cultural que dê sustentação a determinados valores e práticas de gestão.
Retomando as colocações iniciais, observamos que a gestão estratégica de recursos humanos nessas empresas parece estar pautada muito mais pela versão hard, de garantir apenas o alinhamento estratégico aos objetivos organizacionais. E, no conceito de competências individuais adotado, a ênfase fica no sentido de agregar valor à organização, e muito pouco é trabalhado para as pessoas. O modelo de gestão de competências está em construção: coloca ao pesquisador desafios teóricos e, aos profissionais, o desafio do equacionamento da ambigüidade entre discurso e prática.
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Artigo recebido em 28.05.2003.
Aprovado em 10.11.2003.
Maria Tereza Leme Fleury
Professora e Diretora da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo. Interesses de pesquisa em gestão de pessoas, gestão de competências e cultura organizacional.
E-mail: mtfleury@usp.br
Endereço: Av. Prof. Luciano Gualberto, 908, Sala E-116, Butantã, São Paulo – SP, 05508-900.
Afonso Carlos Correa Fleury
Professor Titular e Chefe do Departamento de Engenharia de Produção da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo. Interesses de pesquisa em gesta estratégica, gestão de tecnologia, organização do trabalho.
E-mail: acfleury@usp.br
Endereço: Av. Prof. Almeida Prado, Trav. 2, 128, Butantã, São Paulo – SP, 05508-070.
Fonte: FVG